Minutos ou horas se passaram até que o som de sua
respiração diminuísse e desse espaço ao som de vozes indistintas. Fechou os
olhos para se concentrar. Não entendia o que diziam, mas conseguia distinguir o
som de fogo crepitando na lenha, cavalos relinchando e as folhas das árvores
balançando.
Então vieram os cheiros. Tora queimada, suor, madeira
recém-cortada, sangue, capim ressecado. Aspirou algumas vezes para ter certeza
de que o olfato havia voltado e, só então, experimentou abrir os olhos
novamente.
O ar tremulava ao seu redor, como se fosse mais denso
do que o normal. As pessoas pareciam deixar um rastro negro atrás de si quando
passavam em sua visão periférica, mas este se dissipava dois segundos depois. O
que estava acontecendo?
A primeira coisa que entrou em foco em sua vista
deturpada foi a garota. Ela estava a alguns metros de distância, com os pulsos
amarrados acima da cabeça em um poste de madeira. O vestido de cetim rosa
estava sujo e manchado de sangue e suor. Aos seus pés, estava a conhecida pilha
de lenha de carvalho-vermelho, embora o rapaz não conseguisse se lembrar de para
que servissem.
- Catherine – sussurrou espontaneamente, tão baixo que
nem foi capaz de ouvir a própria voz.
A garota ergueu a cabeça e o fitou, como se ela fosse
capaz de ouvir o seu chamado. Ele sentiu um fogo lento arder em seu peito
quando a encarou nos olhos. Suas íris verdes eram as mais brilhantes e intensas
que já havia visto. Aqueles olhos lhe eram tão familiar, tão íntimos e tão
acolhedores, que desejou poder encará-los de perto.
Enquanto a olhava, a lucidez foi voltando e o mundo
tornou a entrar em foco. Ele estudou a pilha de lenha novamente, rompendo o
contato visual entre eles, e o fogo de outrora foi apagado por uma onda gélida
de terror.
- Não! Catherine!
Tentou andar até ela e foi então que entendeu porque o
mundo parecia estar no ângulo errado. Ele estava de joelhos, com a cabeça e os
pulsos presos por uma pesada estrutura de madeira. Não precisava olhar para
cima para saber que veria a lâmina verticalmente afiada da guilhotina. Então
era assim que morreriam.
Um rugido de escarnio escapou de seus lábios enquanto
tentava, inutilmente, livrar as mãos do círculo de madeira que prendiam seus
pulsos. Se pudesse ao menos trocar de lugar com ela...
- Vejam, o nosso convidado de honra acordou de seu sono
de beleza – disse uma voz masculina. O reconhecimento daquele timbre profundo e
musical reverberou em sua consciência com a força de um ódio antigo. – Peguem
suas tochas – ordenou Lorde Levi de Crisanta.
O Lorde entrou em foco minutos depois, parando em
frente a Catherine. Vestia uma capa de veludo azul marinho que descia até o
chão, as mãos estava encobertas por luvas de couro negro. No ângulo em que
estava, tudo o que o rapaz podia ver de suas feições era o nariz comprido e o
cabelo negro que caía até os ombros.
Segundos depois, dez homens de gibão negro e cota de
malha se juntaram a ele, cada um segurando uma tocha. O pavor começou a crescer
dentro do prisioneiro, lágrimas involuntárias surgiram em seus olhos
arregalados.
- Não! Não! Catherine!
A garota agora fitava Lorde Levi com uma expressão de
desdenho. A cabeça erguida orgulhosamente, como se nada daquilo pudesse abalar
suas convicções.
- Catherine Jhonson, você está sendo condenada à
fogueira por praticar bruxaria. Ato considerado profano perante a Igreja. Que o
fogo arraste sua alma para o inferno e lá você queime por toda eternidade.
- Para o inferno! – berraram centenas de vozes
diferentes. Então, havia mais gente ao redor. Quantas seriam? Não, isso não
importava, nada mais importava.
Em sincronia, os dez homens arremessaram suas tochas na
pilha de lenha aos pés de Catherine, no mesmo segundo em que ela virou a cabeça
para olhar para ele, atendendo ao seu chamado desesperado novamente.
Ela sorriu minimamente e seus olhos pareceram sugá-lo.
Então, uma lembrança invadiu a sua mente como um vendaval vindo de lugar
nenhum. Estava encostado em uma árvore, com Catherine sentada em seu colo de
frente para ele.
- Acha que é verdade? Acha que Lorde Levi pode romper o
nosso ciclo?
- Não acredito nisso – respondeu Catherine, com
convicção – A Sra. Cassandra disse que ele pode, no máximo, anular uma ou duas
gerações. Mas é só. Tenha fé, meu amor.
Ela estava não linda naquele dia. Os longos cachos
louros caídos ao redor de seus ombros nus, os olhos tão cálidos e apaixonados
como nunca...
A memória se dissipou com um grito de parar o coração.
A Catherine do presente agora olhava para o céu, enquanto o fogo subia por seu
vestido. Ela parou de gritar quando as chamas chegaram a sua cintura. A cabeça
pendeu para baixo, lançando os longos cabelos loiros no fogo, dando a ele um
caminho mais curto à sua cabeça.
Os berros dela sessaram, mas os dele ainda apavoravam a
noite. Ele se debateu e tentou se soltar, enquanto o fogo parecia estar
consumindo sua própria pele. Ele sentia que estava morrendo junto com ela,
sentia que estava sendo feito em pedaços.
- CAAATHERINEEEEEE!
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